PARTE 3 - A Fantástica Fábrica de Textos Científicos
- leticiasilveiramz
- 1 de out. de 2020
- 5 min de leitura
Esse post surge após a leitura do texto "O Livro Didático como Mercadoria", que discute a duplicidade do livro didático, que, embora tenha uma finalidade educacional, funciona como um produto mercantil. Será que o mesmo ocorre no discurso científico?

Primeiramente, essa reflexão não busca fazer uma comparação entre diferentes gêneros discursivos. Na realidade, busca-se aqui compreender brevemente o universo editorial científico como mercadoria, assim como ocorre com o livro didático. Percebe-se que ambos possuem finalidades semelhantes e estão inseridos em comunidades discursivas que têm, como base, a educação. Tendo em vista que os artigos científicos surgem de uma pesquisa, é importante entendermos que desde a produção da pesquisa até a circulação do artigo, muitas mãos - e cabeças - participarão de todo processo até a publicação do produto final.
No texto citado acima, a autora menciona uma diferenciação sugerida por Adorno e Horkheimer, sobre o que seria uma "arte séria" e uma "arte leve" produzida pela indústria cultural. Do ponto de vista dos autores, o que diferencia uma arte da outra seria a autonomia da produção. Com isso, a "arte séria" manteria a autonomia do autor intacta, sugerindo uma originalidade, enquanto a "arte leve" teria a intervenção de diversos pares, como editores e os intermédios desse tipo de arte.
Essa diferenciação já me pareceu, de início, muito perigosa. Embora eu não tenha conhecimento sobre o mercado editorial literário, por muitos anos trabalhei em uma editora especializada na prestação de serviços para publicações científicas e também em uma revista científica - tudo ao mesmo tempo, era uma loucura - onde passei a compreender que a produção textual é uma comunicação orientada a objetivos no contexto social da comunidade. Contudo, qualquer texto passará por idas e vindas (conforme citei na parte 2), que serão produzidas a partir de determinações pré-estabelecidas pelo gênero discursivo em que ele se insere. Citando, brevemente, Bakhtin:
“Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. ” (1997, p. 264)
Logo, contrapondo o que diz Adorno e Horkheimer, a autonomia do autor é algo inexistente nas produções editoriais. Conforme defende Munakata, do ponto de vista do mercado editorial, define-se como livro sério aquele que é fiel ao estilo pré-estabelecido, não considerando somente seu conteúdo, mas também a qualidade de sua produção. Isso tudo devido à materialidade do produto, que é o próprio livro enquanto objeto. Logo, se estamos falando em produção, considera-se que há muitos profissionais por trás que produzem essas padronizações e permitem a circulação dos textos escritos pelos autores.
O mesmo ocorre com os artigos científicos: Aqueles artigos que citamos e utilizamos em nossos trabalhos, não foram simplesmente colocados em circulação pelo autor. Além da questão dos processos editoriais de padronização e de respeito às normas editoriais, há de considerar a legitimação da tese e da pesquisa que o artigo desenvolve, fato extremamente relevante para as universidades e departamentos.
Além disso, ainda no texto de Munakata, comenta-se que os autores são obrigados a adequarem seus textos a normas de publicação. Embora isso seja verdade, essa adequação não depende somente do autor. Em muitos casos, o próprio revisor da revista ou editora em que o artigo foi submetido irá trabalhar essa normatização e padronização, mesmo que o autor não o tenha feito. Esse é só mais um fato que comprova a ilusão da autonomia autoral. Para entendermos melhor como ocorre esse processo, buscando compreender o texto científico como mercadoria, adaptei um fluxograma que demonstra as etapas de todo processo de publicação editorial científica.

Figura 1 - Processo de Publicação Editorial
A imagem acima é baseada no software gratuito para gestão de revistas chamado “Open Journal System”, projetado para facilitar o desenvolvimento de um acesso aberto, ao fornecer a infraestrutura técnica. O software não é usado somente para a apresentação online de trabalhos e artigos, mas também é usado como o principal gerenciador do processo editorial, incluindo a submissão do artigo, as rodadas de revisão e o arquivamento. Como dito anteriormente, o processo editorial depende de diversos profissionais, e assim acontece com o OJS: ele depende de indivíduos para cumprirem diferentes papéis como o editor gerente, editor, revisor, parecerista, autor, leitor e etc.
Importante salientar que, embora esse software seja gratuito, muitas revistas que o utilizam possuem pouca citação e circulação, o que faz com que sua qualificação (qualis) seja baixa. Claro que, essa questão não menospreza a qualidade da produção, somente comprova o caráter mercantil dos textos científicos. Milhares de revistas com maior citação e, consequentemente, maior qualis (A, A1, A2, B..) utilizam plataformas pagas e contratam editoras para realizarem os serviços de padronização, diagramação, preparação, tradução, revisão, enfim, toda produção editorial. Logo, há muitos profissionais que entram no mercado de trabalho e sustentam suas famílias, trabalhando com textos científicos! Inclusive, mesmo as revistas de qualis mais baixas, que utilizam a OJS, possuem funcionários contratados e estagiários disponíveis.
De todo modo, a imagem mostra claramente essas idas e vindas que o texto percorre durante todo percurso editorial. Inclusive, a escrita do autor nem participa desse processo, somente a reescrita. Teoricamente, ele somente submete o texto - obviamente já escrito - para a revista, e ela quem fará o restante do trabalho, solicitando o autor novamente, se precisar (e sempre precisa, como vimos no meme bobo que fiz para esse post, hehehe). Logo, a escrita do artigo é o único processo individual que antecede o processo editorial e poderia ser a única etapa com um caráter autônomo da arte - mas, será que é tão individual assim, se considerarmos a intertextualidade e a polifonia?. De todo modo, cai por terra, mais uma vez, a ideia de que um texto sério é aquele que mantém a autonomia da obra e do texto intacta. No meu ponto de vista, é o oposto. Quanto mais por processos e olhares competentes aquele texto passar, melhor se adaptará aos padrões e às normas do gênero que a comunidade discursiva pré estabeleceu há muitos anos.
E, além disso, durante todo o processo editorial existe um percurso dialógico entre os participantes. Conseguimos notar nessa imagem a existência de pelos menos 5 profissionais diferentes: autor, editor, parecerista, revisor, diagramador. Todos eles constroem uma relação dialógica não cronológica, estando em contanto constantemente, de onde o texto viajará inúmeros vezes. Elaborei uma imagem para compreender melhor essa questão:

Figura 2 - Processos de idas e vindas do texto
Dessa forma, com essas pequenas demonstrações já conseguimos observar que, assim como o livro didático, os textos científicos também funcionam como mercadoria com um valor de troca. Existem profissionais que recebem para trabalhá-los, e existem instituições inteiras que funcionam em torno desse trabalho. Ora, se os textos científicos são os comprovadores da eficiência investigativa de uma universidade inteira, ou, simplesmente de um departamento, então sua produção deve ser excelente! Fato que transforma esses textos em produtos com valor:




* Acesso: " O Livro Didático como Mercadoria": https://www.scielo.br/pdf/pp/v23n3/04.pdf
Referência
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Os gêneros do discurso. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,1997.
Obrigada por ter lido até aqui!
Até a próxima.
Letícia
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