PARTE 2 - Reflexões de uma pesquisadora: existe uma forma correta de se ler?
- leticiasilveiramz
- 23 de set. de 2020
- 6 min de leitura
Apresento nesse post uma micro parte da pesquisa que venho desenvolvendo no mestrado, tentando relacionar as diferentes perspectivas sobre leitura, de diferentes contextos e gêneros discursivos.

A Leitora - Jean-Honoré Fragonard
Uma breve introdução
A Análise do Discurso surgiu como um reflexo da necessidade de se compreender os modos de ler, mostrando-se como uma resposta a ideia do estruturalismo que entende o funcionamento da língua como algo independente do falante. Com isso, a AD ocorre como um conjunto de teorias sobre as restrições que o discurso sofre, nos fazendo considerar inúmeras perspectivas sobre sua circulação, controle e interpretação.
Embora não tenha dado conta de todas as questões que envolvem a leitura, a AD contribuiu e contribui para se pensar a relevância do texto, considerando: 1) o leitor e 2) o sentido. E, ao citar sentido, aparece um fato fundamental para essa reflexão: a AD abandona a exigência do sentido "correto". Dessa forma, nos interessa aqui explicar e entender o motivo pelo qual o leitor (não) lê/leu o que (não) lê/leu, e não buscar significações corretas e únicas do texto. De fato, é fácil compreender que, se quem lê é o leitor, para compreendermos a leitura, também - é claro que não se exclui a importância do texto - é necessário considerá-lo.
Dada essa brevíssima introdução, questiono: há uma forma correta de se ler?
A reflexão aqui apresentada surge a partir dos estudos que venho realizando em minha pesquisa de mestrado há alguns anos sobre Letramentos Acadêmicos, que, embora não estude apenas as práticas de leitura, considera o letramento como uma prática social. Com isso, apesar desta disciplina encontrar-se em torno da literatura e do mercado editorial, muito me interessa unir todas essas perspectivas, pois, assim como na literatura, o gênero científico também participa de idas e vindas do texto ao se envolver em um processo editorial amplo (com autores, revisores, editores, leitores, pareceristas), contínuo (levando em conta a sua circulação) e ocorre em torno e dentro de uma comunidade discursiva.
Estudos dos Letramentos Acadêmicos
Para contextualizar essa reflexão, devemos compreender que o campo de pesquisa sobre estudos de letramento acadêmico encontra-se em um notório crescimento devido, principalmente, à massificação do ensino superior. Com isso, nos deparamos com a problemática do discurso sobre o desprovimento (déficit) do letramento de alunos introduzidos na universidade, questão essa que me incentivou a iniciar o meu estudo.
Porém, se existe um discurso naturalizado na comunidade acadêmica de que os alunos estão "lendo e escrevendo errado", há, logo de cara, uma contradição com os estudos das AD que afirmam que não existe uma leitura errada, mas sim leitores com diferentes especializações ou conhecimentos prévios. Logo, apenas para situar, afirmo que o objetivo da pesquisa é investigar de que modo estudantes universitários encaram as modalidades dos textos acadêmicos e quais são suas concepções sobre o fazer científico, buscando desconstruir o discurso do déficit de letramento ao comprovar a natureza sociocultural das práticas letradas. Para contribuir com essa discussão, apresento abaixo alguns - poucos - dados retirados do questionário aplicado, considerando apenas questões que envolvem as perspectivas dos alunos sobre a leitura de textos na universidade, que nos interessa nessa disciplina.
Vamos aos (poucos) dados
Os dados aqui apresentados foram extraídos de registros de diários de campo e questionários semi-estruturados que integram um banco de dados relativos a uma investigação mais ampla, desenvolvida a partir de uma abordagem etnográfica em uma disciplina de produção de texto de uma turma universitária de 30 alunos. Em um primeiro momento, apenas para essa discussão, selecionei somente as questões e perguntas que envolvem as práticas de leitura dos alunos. Então, vamos lá!
Em um determinado momento do questionário, foi solicitado aos estudantes que assinalassem algumas alternativas sobre suas experiências com a leitura e escrita do gênero científico na universidade, de acordo com a figura 1:

Figura 1
Em reposta, segundo a figura 2, metade dos alunos entrevistados respondeu que possui dificuldades em escrever e ler textos na universidade, enquanto 33,3% responderam que não possuem dificuldades ao escrever, mas sim em ler:

Figura 2
Observa-se aqui, que, nenhum participante assinalou a questão C. Ou seja, 83,3% dos entrevistados encontram dificuldades em suas leituras. Posteriormente, foi aberta a questão para que eles escrevessem sobre essas dificuldades, como consta na figura 3:

Figura 3
Vejam nesse momento, que os dados apresentados muito se relacionam com a pesquisa do IPL apresentada em sala de aula pelo professor Haroldo: embora achemos, em um primeiro momento, que o maior motivo da falta de leitura é a financeira ou a falta de acesso, os resultados nos provam o contrário. Enquanto para o mercado editorial da literatura, os maiores empecilhos para a leitura estejam relacionados à falta de tempo e a preferência por outras atividades (conforme a pesquisa), no contexto universitário não existe essa escolha: a leitura dos textos e da bibliografia obrigatória é a base para que os estudantes possam concluir os seus cursos. Mas, ao mesmo tempo, há uma semelhança entre esses estudos, quando notamos a baixa escolha de todos os participantes ao assinalar motivos financeiros como impedimento para suas leituras. Com isso, obtivemos as seguintes respostas:

Figura 4
Tanto as questões de múltipla escolha, quanto às respostas escritas, apontam para uma rejeição dos estudantes em relação às práticas de leitura (75% dos entrevistados, conforme figura acima) devido às suas terminologias e à sua obrigatoriedade por conta do caráter avaliativo das atividades - diferente de outros leitores de outros gêneros discursivos, conforme pesquisa do IPL. Vejam que, nenhum participante assinalou a dificuldade de acesso ou falta de poder aquisitivo para adquiri-los, embora saibamos que muitos livros acadêmicos possuam preços bem elevados.
Insiro aqui minha reflexão que, levando em conta que o acesso não é uma dificuldade para os alunos, então, de que modo eles estão adquirindo esses textos? Ao considerar um estudo mais complexo, surgiriam resultados e reflexões sobre o mercado editorial dos textos acadêmico-científicos, que também contribuiria para o entendimento sobre leitura e desenvolvimento do mercado científico, algo presente em muitos estudos já realizados.
Além disso, os resultados extraídos dos diários de campo também demonstram algumas questões que comprovam o caráter social das práticas e letramento, e, principalmente da leitura. Os trabalhos em grupo demonstraram que ao serem envolvidos em práticas de letramento, recorrendo-se principalmente do diálogo, da participação e da negociação de decisões, suas performances nas tarefas de leitura foram concluídas com maior ausência de dificuldades e dúvidas, comparando-se com outras aulas onde as tarefas solicitadas pelo professor foram feitas individualmente. Fatos esses, então, que excluem o discurso do déficit de letramento por parte dos alunos e evidencia o aspecto sociocultural da leitura - e da escrita.
* Gostaria apenas de salientar que, os gráficos e figuras apresentados acima foram produzidos para este post em específico, a partir dos dados extraídos dos meus instrumentos de pesquisa. Logo, não são imagens retiradas diretamente de nenhuma outra fonte.
Então, existe uma forma correta de ler?
Após essas e outras discussões que foram realizadas em sala, em outras leituras, e até em outras disciplinas, consigo compreender algumas questões fundamentais sobre a leitura. Respondendo então a pergunta: há uma forma correta de se ler? Minha resposta é não. Pois, primeiramente, não existe uma leitura, mas sim, multi leituras. Para compreendê-las, elenco algumas possíveis explicações:
1) Quando os estudantes dizem que possuem dificuldades em ler textos teóricos, justamente devido a dificuldade com a teoria, é porque eles podem associar o texto a determinado discurso em vez de outro, que pode nem ter sido lido. Com isso podemos perceber que, de fato, não há uma leitura correta. Mas algumas corretas, assim como algumas erradas, pois, além do leitor, a leitura depende da intertextualidade e do próprio texto.
2) Quando eles apontam que as dificuldades na leitura dos textos dizem respeito à repetição do gênero, que parece dizer sempre as mesmas coisas, notamos que este estudante lê o texto a partir de uma ideia já fechada e acha que já tem conhecimento do que está sendo dito, mesmo que o texto esteja dizendo outra coisa.
3) Quando é respondido que a maior dificuldade de leitura é a linguagem acadêmica, conseguimos compreender que a frequência das mesmas expressões e palavras nos textos do gênero científico, faz com que os estudantes as associem a outros temas que podem sempre ser referenciados por essas expressões, mas que não é o tema daquele texto.
Para concluir, reitero que não existe uma forma correta de se ler. Para compreender essas multi leituras, devem ser considerados os contextos em que esses textos surgem e circulam; os sujeitos que os produzem e os consomem; o gênero discursivo (dado os exemplos sobre o gênero literário x gênero científico, que possuem por si só diferentes leitores ao circularem em diferentes contextos, conforme observamos na pesquisa apresentada em sala de aula e aqui) e, para finalizar, muito além dos indivíduos, os grupos de sujeitos que leem como leem, por terem a história que têm.
* Dados e informações extraídos da minha dissertação de mestrado em andamento intitulado "Escrita na Universidade: Um estudo etnográfico acerca dos desafios do fazer científico de estudantes no ensino superior."
Comments