PARTE 7 - As autoras por trás dos autores
- leticiasilveiramz
- 8 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
Nos últimos meses assisti a uma entrevista da escritora Gillian Flynn (autora do livro "Garota Exemplar"), em que ela defendia que as vendas de seus livros poderiam explodir se ela utilizasse uma identidade neutra, ao invés de assinar como ela mesma. Apesar de ser uma autora contemporânea, muitas outras autoras ao longo da história utilizavam, de fato, pseudônimos masculinos ou neutros em suas obras para fugir do preconceito que as perseguiam.
Sabemos que, por meio das formações discursivas, construímos e reproduzimos historicamente e culturalmente diversas formações imaginárias. Por muitos séculos, a mulher foi obrigada a se apresentar como uma máquina reprodutiva, enquanto era imaginada como uma criatura frágil e nada sábia, tendo o direito de ocupar e cuidar apenas, e unicamente, do lar e da família.
Na realidade, isso ocorreu devido à predominância e existência do patriarcado que, por fatores ideológicos fortes, sempre enxergou a mulher com inferioridade em relação aos homens. Por muito tempo as mulheres ocuparam espaços desprestigiados, periféricos, longe das escolas e bibliotecas, já que para a sociedade seus corpos frágeis, "menstruáveis", deveriam sempre ser resguardados para a gravidez, as transformando sempre em submissas aos interesses masculinos. Em contrapartida, esse afastamento permitiu a construção de suas subjetividades.
Na passagem do século XIX para o século XX, as mulheres começaram a assumir posições onde puderam expressar suas ideias sobre a sociedade e passaram a buscar igualdade de gênero. Logo, para preencher lacunas vazias, os jornais começaram a circular textos de mulheres com mais frequência. Porém, a crítica e os descontentamos eram duros, fazendo com que elas fossem até perseguidas e mortas durante muitos anos, justamente por expressarem suas ideias. Com isso, muitas delas tiveram que se proteger atrás de familiares ou de parentes escritores, utilizando-se de pseudônimos masculinos, neutros ou ambíguos com suas iniciais, a fim de disfarçarem suas autorias. Sendo algumas:

(1804 – 1876) Amandine Dupin – George Sand
"George Sand" foi um nome que chegou a ser colocado, por Fiódor Dostoiévski, no “primeiro lugar nas fileiras dos escritores novos”.

(1829 – 1885) Eugénie-Caroline Saffray – Raoul de Navery
Para conseguir publicar, ela utilizou o nome de seu avô. Assim, conseguiu uma recepção melhor para seus romances.

As irmãs Brontë – os irmãos Bell
"Como nossa forma de escrever e pensar não era o que se chama de ‘feminino’, tínhamos a impressão de que seríamos vistas com preconceito enquanto autoras”.
Doido pensar que, até hoje, autoras consagradas, como Gillian Flynn, ainda tenham que pensar na possibilidade de utilizarem pseudônimos neutros ou masculinos em suas obras para serem prestigiadas, né?
Sabemos que o conceito de autoria passa por diversos lugares da linguística, como a Análise do Discurso e o de meios e materiais, incluindo a perspectiva de autoria no mercado editorial. Acredito que ambas perspectivas me auxiliam para compreender que, o conceito de autoria deve estar articulado entre o interior e o exterior. O que diz respeito ao exterior, na análise do discurso, pensamos na sociedade, na intertextualidade, nos espaços, nas condições de produção. Enquanto para o mercado editorial pensamos em todas as "mãos" que fazem o trabalho, até a publicação do produto final.
Além disso, do ponto de vista da AD, o autor é um sujeito que reconhece o externo pelo qual ele caminha e faz suas referências, mas, ao mesmo tempo, estará sempre remetendo à sua interioridade e recorrendo à sua identidade. Com isso, o autor assume a responsabilidade pelo o que diz e pelo conteúdo do seu dizer, implicando em sua inserção na cultura e definindo sua posição no contexto sócio-histórico. A partir dessa perspectiva, para a linguista Eni Orlandi no texto "Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos" (2009), aprender a se representar como autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na relação como a linguagem: constituir-se e mostrar-se autor.
Por outro lado, mas nem tanto, a perspectiva do mercado editorial sobre autoria define, também - além de muito mais - a autoria pela responsabilidade do dizer. No livro "Tarefas da Edição" (2008), no capítulo sobre "Autoria", Salgado afirma que o conceito de autoria envolve:
"Três questões fundamentais: autoridade, autenticidade e legitimidade, sendo que as duas primeiras supõem esta última, um valor atribuído por terceiros. Ou seja: a autoria está sempre ligada a uma autorização para dizer, conferida pela possibilidade de atestar a fonte do dizer. A legitimidade do que se diz está, assim, atrelada a um entendimento consensuado numa dada comunidade ou sociedade (a escala de reconhecimento é variável), conforme suas formas de testificação ou seus sistemas de consagração."
Partindo dessas perspectivas, conseguimos compreender que a história e a linguagem andam lado a lado, desde que o mundo é mundo. Em tempos de uma sociedade ultra conservadora, onde mulheres eram vistas e imaginadas das formas mais opressoras e submissas possíveis, a história da literatura e da linguagem também se modificava. A responsabilidade do dizer era algo não permitido e não dado às mulheres. Uma mulher jamais poderia se constituir e mostra-se autora, nos mostrando que os papeis sociais e as posições ocupadas por nós eram definitivamente definidos pelo patriarcado. Inclusive, interesse notar que todas essas mulheres participavam de maneira ferrenha dos movimentos feministas na época e, mesmo quando o assunto não era feminismo, suas obras era criticadas. Bastou se empossarem de nomes masculinos para que suas obras fossem exaltadas!
Finalizando minha reflexão, penso que de fato, houve um grande movimento daquele tempo até hoje, fazendo com que muitas mulheres maravilhosas sejam reconhecidas pelas suas obras incríveis. Mas, ao mesmo tempo, ainda vivemos em uma sociedade em que as mulheres são consideradas menos inteligentes, mais emotivas e menos capazes que os homens, afetando diretamente a literatura no século 21. Dessa forma, vemos que essas questões culturais e sociais não incluem somente a diferença salarial, a violência doméstica, o assédio e a desigualdade de gênero em todos os aspectos imagináveis. Mas também influenciam as noções de autoria que discutimos até hoje, em todos os campos da linguística, uma vez que a sociedade oprime quem se mostra autora e, além disso, não permite a responsabilidade do dizer.

Obrigada a quem leu até aqui!
Até mais.
Letício
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