PARTE 5 - Nove pavilhões, sete mil homens
- leticiasilveiramz
- 19 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Sempre que leio sobre heterotopia, começo a pensar sobre as inúmeras realidades existentes nos mais diversos espaços sociais. Em um ano tão vazio de sentimentos cheios, me parece importante celebrarmos a existência humana que se constitui através desses espaços. Logo, festejar a vida, é refletir sobre os comportamentos, a construção do pensamento e as relações entre os espaços sociais.
É fato que nascemos, vivemos e morremos rodeados de lugares. Durante toda vida, ocupamos muitos espaços, ao mesmo tempo, que nos transformam, e, consequentemente, nos fazem transformá-los. Todas as casas, escolas, bibliotecas, praças, feiras, teatros, cinemas, ruas, estradas, hotéis, navios, aviões, carros, lojas, restaurantes, hospitais, enfim, todos os lugares que passamos durante toda nossa existência, estão sempre refletindo as mais diversas representações que transformam as nossas vidas e nosso dia-a-dia.
Sendo assim as heterotopias, como é que podem ser descritas e que sentido assumem elas? Poderemos apelar para uma descrição sistemática – não diria uma «ciência», pois esse é um termo demasiado em voga nos dias de hoje uma descrição que numa dada sociedade tomará como objeto o estudo, a análise, a descrição e a «leitura» (como alguns gostariam de dizer) destes espaços diferentes, destes lugares-outros. Sendo uma contestação do espaço que vivemos simultaneamente mítica e real, esta descrição poderá ser intitulada de heterotopologia. O seu primeiro princípio é o de que não há nenhuma cultura no mundo que não deixe de criar as suas heterotopias. É uma constante de qualquer e todo o grupo humano. Mas é evidente que as heterotopias assumem variadíssimas formas e, provavelmente, não se poderá encontrar uma única forma universal de heterotopia. (Foucault – De Outros Espaços)
Dentre outras classificações, Focault classifica as heterotopias de desvio como aqueles espaços que excluem os indivíduos que, por algum motivo, não estão de acordo com as regras impostas pela sociedade padrão e acabam por causar "instabilidade social". Uma ideia que já nos permite compreender que esses indivíduos, de certa forma, estão, ao mesmo tempo, inseridos e excluídos: inseridos em um espaço que faz parte e é importante para a estruturação de toda uma sociedade e excluídos do campo social. Com isso, comecei a pensar sobre as cartas dos detentos nas prisões. Ao ler mais sobre heterotopias de desvio, passei a perceber que os prisioneiros sempre irão ocupar dois espaços completamente distintos ao mesmo tempo, como veremos abaixo.
Pensar nessas ocupações múltiplas nos permite refletir sobre como esses indivíduos serão representados, vistos, inclusive por eles mesmos, e, definem a produção de saberes de todas as pessoas que ocupam os campos sociais. Ou seja, no mesmo campo que existem casas, escolas, bibliotecas, há também as prisões, os hospitais psiquiátricos, compostos por pessoas que, em algum momento, desviaram do que é "normal". A fim de compreender melhor essa questão, separei alguns trechos da música "Diário de um Detento", dos Racionais Mc's, que nos permite enxergar algumas questões sobre as ocupações duplas desse indivíduo.
"Vários tentaram fugir, eu também quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero
Será que Deus ouviu minha oração?
Será que o juiz aceitou a apelação?
Mando um recado lá pro meu irmão
Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão
Ele ainda tá com aquela mina
Pode crer, moleque é gente fina
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá
Tanto faz, os dias são iguais
Acendo um cigarro, e vejo o dia passar"
Nesse trecho, podemos observar que, mesmo enclausurado neste lugar que o exclui de outras vivências e espaços, ele continua em contato com o exterior e com seu espaço familiar. Sempre pensando em sua outra realidade, fora dali. Logo, estes espaços sociais não estão distantes e, em determinado momento, se encontram devido aos múltiplos convívios (o detento e o juiz, o detento e o irmão) e suas histórias (a relação do irmão com uma companheira, a relação do irmão com as drogas). Vejam que o sujeito é excluído, e, ao mesmo tempo, é deixado próximo dos olhos: ele é vigiado e dominado.
"Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK
Metralhadora alemã ou de Israel
Estraçalha ladrão que nem papel
Na muralha, em pé, mais um cidadão José
Servindo o Estado, um PM bom"
Aqui, conseguimos perceber como se estruturam as relações de poder que constituem a vida dos indivíduos em sociedade. Assim como no outro trecho, pessoas com diferentes histórias e pensamentos, que ocupam diferentes espaços, se relacionam em um determinado momento. Um, vindo de um espaço "privilegiado" e, outro, aprisionado, se encontram através de uma relação de dominação e violência. Por isso que, para compreender essas relações, é necessário que se investigue onde e como essas relações acontecem e em que lugar serão produzidos seus efeitos.
"Cada detento uma mãe, uma crença
Cada crime uma sentença
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima
Sangue, vidas inglórias, abandono, miséria, ódio
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Misture bem essa química
Pronto, eis um novo detento"
Embora o detento já estivesse inserido e, possa estar inserido grande parte de sua vida em um espaço social urbano, mesmo que periférico, e, mesmo que exista uma história para cada indivíduo ocupante desses espaços heterotópicos, eles carregam por si só as marcas de violência, criminalidade e periculosidade que os fazem ser suspeitos e sempre mal vistos pelo restante da sociedade.
Dessa forma, a heterotopia delineia o pensamento sobre as semelhanças entre os espaços existentes no mundo, não como uma teoria para estrutura-los, mas como uma possibilidade de se refletir sobre os espaços sociais que contribuem com a existência humana, a construção do pensamento e o comportamento de todas as pessoas que habitam esses lugares.
É claro que, essa brevíssima reflexão sobre a música e as heterotopias de desvio pode se tornar um post maior futuramente. Há muito o que ser visto e refletido nessa obra maravilhosa que, só a vida, a arte e a filosofia podem compreender.
Obrigada pela leitura!
Até já!
Letícia
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