PARTE 1 - Me chame de Heterotopia
- leticiasilveiramz
- 15 de set. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de out. de 2020
O seriado dramático "Me Chame de Bruna" apresenta uma perspectiva que atravessa a prostituição e atinge aspectos humanos e sociais das prostitutas brasileiras. Entretanto, seria a série uma heterotopia?

Lançado em 2016, o seriado brasileiro do canal FOX "Me chame de Bruna", mostra a vida e carreira da protagonista Raquel Pacheco/Bruna Surfistinha (interpretada pela genia Maria Bopp), a qual apresentou grande repercussão na mídia em 2005 devido sua história na prostituição. Porém, diferente do filme lançado em 2011, a série leva muito mais em conta as histórias das relações humanas, as uniões femininas, os abusos e a complexidade da sociedade machista do que a prostituição, de fato.

Filme "Bruna Surfistinha"
A história da série aborda uma realidade do mundo sem a lei da prostituição, mostrando o cotidiano de garotas de programa que, por sua vez, são mães, filhas, irmãs, namoradas e esposas, que precisam viver aquela realidade por motivos de sobrevivência, ao passo que são vistas como simples objetos de desejo sexual pelos clientes, que representam a sociedade em que vivemos. E, assim como diversas obras cinematográficas, a história possui forte influência no livro escrito pela própria Raquel Pacheco (Bruna Surfistinha), chamado de O Doce Veneno do Escorpião, que conta fatos vividos por ela em seus programas.

Livro "O Doce Veneno do Escorpião - O diário de uma garota de programa"
Porém, a vida da protagonista é apresentada com um olhar muito mais responsável e sensível do que no livro e, principalmente, do que o filme, expondo suas inseguranças, seus traumas, seus vícios e sua vulnerabilidade. O mesmo ocorre com outras personagens apresentadas na série: No privê em que Bruna trabalha na primeira temporada, vivem inúmeras prostitutas, cada uma com sua história e suas vivências que são contadas minuciosamente em cada episódio, fazendo com que fiquemos cada vez mais interessadas em suas vidas complexas e sofridas. Isso porque, cada história ali contada apresenta uma natureza completamente diferente da outra, comprovando a pluralidade da realidade na prostituição: mulheres pobres, ricas, pretas, brancas, magras, gordas, trans, bissexuais, gays, heterossexuais, casadas, solteiras, mães, brasileiras, estrangeiras. Outra questão importante para futuras reflexões sobre ethos discursivo, não acham?
Mas o que nos interessa aqui, nesse momento, é tentar compreender de que modo a série "Me Chame de Bruna" encaixa no conceito de heterotopia proposto por Focault. Seria a série uma heterotopia? Para compreendermos essa questão é preciso, em primeiro lugar, entender o que são as heterotopias.
Para Focault, o termo heterotopia descreve espaços que têm múltiplas camadas de significação ou de relação a outros lugares, e cuja complexidade não pode ser vista. Ou seja, existem condições de produção que envolvem os espaços, objetos e os indivíduos que ali ocupam e quando ocupam. De fato, essa noção nos permite compreender que existe uma realidade que exerce um tipo de contra-ação a posição que ocupamos no real. Um exemplo disso é o espelho, dado por ele: o lugar e o não-lugar. Segundo o autor:
"O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão das nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também, em si próprio, um espaço heterogêneo. Por outras palavras, não vivemos numa espécie de vácuo, no qual se colocam indivíduos e coisas, num vácuo que pode ser preenchido por vários tons de luz. Vivemos, sim, numa série de relações que delineiam lugares decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impor."
Focault nos apresenta algumas definições das heterotopias que facilitam nosso entendimento sobre a ocupação desses espaços. Em primeiro lugar, é fato que todas as culturas formaram heterotopias por todas a história da humanidade. Com isso, é fácil entender o motivo pelo qual elas variam conforme o passar dos anos em cada cultura, assim como a língua, a música, os filmes e a literatura. Além disso, o autor defende que as heterotopias podem unir múltiplos espaços incompatíveis entre si, um exemplo disso são os zoológicos: ali vivem animais e plantas das mais variadas localidades e espécies do mundo. Ou seja, é um lugar único inserido na realidade que se relaciona e representa condições de outros lugares.
Outra questão abordada por Focault sobre as heterotopias é o tempo. Para ele, elas viabilizam a conexão dos mais variados períodos de tempo. Um exemplo clássico dessa característica são os museus e as bibliotecas: lá se acumulam arquivos do passado e do presente. E, por último, uma característica que, por sua vez, se torna mais importante nessa reflexão, é que as heterotopias são lugares distintos da sociedade com regras de entrada e saída.
Dito isso, linquemos agora essas questões com a série aqui apresentada. Sabemos que, a prostituição em qualquer lugar do mundo é vista como uma profissão "suja", "vulgar", de "vagabunda". Esteriótipos esses que são desmitificados pela própria série. Por isso, muito nos remete essa questão com a defendida por Focault: nos espaços em que a prostituição acontece, existe um refúgio da sociedade por parte dos clientes - e até das prostitutas - , fato muito explorado e demonstrado pela série, que apresenta inclusive, a frequência de padres e pastores nas casas de prostituição.
Diante desse fato, aprofundemos ainda mais no que Focault apresenta como heterotopias de crise e heterotopias de desvio. A primeira diz respeito a lugares privilegiados, sagrados ou proibidos, reservados para indivíduos que estão em estado de crise em relação à sociedade em que vivem. Já, o segundo, tem relação com as instituições onde são internados indivíduos com comportamentos indesejados pela sociedade. De todo modo, para Focault:
Estas heterotopias de crise têm desaparecido dos nossos dias e sido substituídas, parece-me, pelo que poderíamos chamar heterotopias de desvio: aquelas nas quais os indivíduos, cujos comportamentos são desviantes em relação às norma ou média necessárias, são colocados.
Com isso, uma grande demonstração desses espaços heterotópicos pela série é a existência de uma igreja evangélica em frente a uma casa de prostituição. Isso demonstra dois espaços distintos, com diferentes condições de produção e ocupações, mas, ao mesmo tempo, se misturam em determinado momento quando prostitutas frequentam a igreja e, pastores e fiéis, frequentam, escondidos, o bordel. Com isso, é interessante observar que as heterotopias têm uma função relacionada ao espaço ao redor, mas, ao criar um espaço tão perfeito e meticuloso (como a igreja), cria-se um espaço ilusório que espelha as regras e normas aceitas por uma sociedade, em detrimento de outros espaços (como o bordel).

Pastores "julgando" casa de prostituição
Além dessa questão, não meramente geográfica, observada na série, há também a história de uma das personagens que muito nos remete aos debates das heterotopias de crise e de desvio, uma vez que faz alusão total à realidade de mães que são prostitutas. A história de Georgette, uma mulher que é mãe e prostituta, contada em todas as temporadas, nos comove do início ao fim. Sem estudo, dinheiro e com o marido sempre viajando devido a profissão de caminhoneiro, ela encontrou na prostituição uma renda para sustentar a filha.

Georgette e filha no bordel onde Georgette trabalha
Quando o marido descobre sua profissão, ele pede a guarda da criança e Georgette passa a procurar emprego em outros lugares, mas sofre com a sociedade machista que a rejeita e não consegue trocar de profissão. Veja que, Georgete não é nem seu nome verdadeiro, comprovando essa fuga caracterizada pelas heterotopias de crise citadas por Focault. Além disso, esse tema é extremamente próximo da realidade, uma vez que é comprovado em diversas fontes a luta das mulheres que se prostituem para sustentarem seus filhos, e de certa forma, não possuem um lugar privilegiado na sociedade, nem mesmo na própria família, evidenciando esse embate existente entre os espaços familiares aceitos pela sociedade com os sociais e profissionais.
Finalizo aqui minhas reflexões entendendo que, de fato, falta muito para que haja uma compreensão mais profunda sobre as heterotopias citadas por Focault. Por isso reafirmo perguntando: Seria a série uma heterotopia? O que vocês acham?
Eu compreendo que diante desse cenário igreja/bordel, mãe/prostituta, família/sociedade, ficção/realidade há muito mais há ser dito. Porém, seguirei nessa linha para que exista aprofundamento dessas questões em postagens futuras.
Agradeço quem tenha lido até aqui!
Até já :)
Letícia
Comments